Livro: S. [V.M. Straka]


S. - ou O Navio de Teseu - foi a causa de um verdadeiro frenesi no universo YA da literatura brasileira em 2016. Assim, talvez eu esteja atrasada por lê-lo e resenhá-lo somente agora, mas sigo em frente com certo distanciamento das centenas de resenhas que saltam aos olhos em resposta a uma rápida pesquisa no Google. O livro foi originalmente elaborado por J. J. Abrams e Doug Dorst - nomes que não me diziam nada até reparar que muita gente comprou o livro por eles - e relançado pela editora Intrínseca no Brasil cerca de dois anos depois. Foi um processo trabalhoso, dizem os especuladores, devido a parte do livro ter de ser impresso na China, e todas as surpresas que acompanham os volumes terem sido colocadas entre as páginas de forma manual, livro por livro. Enfim, ninguém ousa colocar em discussão a qualidade e a proposta inovadora de S.
Todavia, o que realmente importa, penso eu, é a experiência de leitura, e isso é algo que amo fazer: mergulhar na experiência de um livro. Não como se fosse uma personagem ou estivesse a escrevê-lo, mas fazer possível o sentimento de ser parte de seu universo e dedicar-se a ele, tirando de sua capa e de suas páginas propósitos meramente decorativos e preenchedores de estante. 
Para ler, não pesquisei páginas ou pistas na internet: abri O Navio de Teseu sobre uma mesa - procedimento recomendável se você não quiser dispersar os recortes de jornal, cartões, fotos e cartas inseridos entre as páginas - e comecei a leitura. Devo dizer que até a página 106 percorri o livro aos solavancos, fazendo pausas de dias e me confundindo com as muitas anotações nos cantos das páginas feitas em duas caligrafias diferentes. Após um acontecimento que propiciou a frase "(...) ele não está inconsciente. Apenas não está muito presente no presente.", tomei um caderninho e passei a interagir verdadeiramente com o livro. 
Criado para ter sido escrito pelo misterioso V. M. Straka - autor voluntariamente anônimo em sua época, itinerante, possível aficcionado pela observação de pássaros e perseguido por diversos grupos opositores - e traduzido por F. X. Caldeira (também conhecida como Filomela ou Filo), o volume em minhas mãos, editado pela inexistente Sapatos Alados, havia sido um exemplar da biblioteca do colégio Laguna Verde, roubado pelo ilustre ex-aluno "Eric".  Ele, já formado na Pollard State University, continua frequentando sua biblioteca de forma anônima, trabalhando com O Navio de Teseu, livro deixado no recinto, encontrado e lido por Jen, arquivista e estudante de literatura. Os dois começam a conversar através de suas páginas em diversos momentos (assinalados pelas trocas de cores de canetas e lápis, assustadoras de tão verídicas que parecem), e o leitor passa a acompanhar diversas histórias ao mesmo tempo: a de S. em O Navio de Teseu, a da tradutora/autor e da possível organização à qual este pertence, e a de Jen e Eric, que comentam as duas anteriormente citadas e constroem a sua própria em frases apertadas nos cantos, esquemas de flechas e cartas. 


As três histórias são boas e envolventes de uma maneira que chega a ser repulsiva. Elas geram pensamentos involuntários em momentos de ócio e chegaram a se intrometer em atividades regulares minhas, como se o livro estivesse me chamando, porque pesadelos pouco se importam com fronteiras - e talvez esse seja o momento que você me ache louca e pare de ler essa resenha, se é que tem alguém lendo. Enfim, além de possuírem uma boa construção textual, as expressões me conquistaram (e ganharam anotações próprias), como "(...) sentar na penumbra espeleológica e falar aos sussurros",  "chiff úmido" e "é o som da insanidade em uma escala de mais de doze tons". A propósito, são esses dois fatores citados que constroem meu questionamento sobre o encaixe da obra na literatura young adult, o qual perpassa por suas cenas verdadeiramente repulsivas (vide sonho com Sola e as dentaduras e a cerimônia tradicional do navio) e seus vocábulos não tão usuais, como gemido entômico, hidrobatídeos, mustelídeo e quicunce - que a curiosidade me fez pesquisar. Não que isso seja um fator depreciativo, mas, na minha visão, S. merecia mais destaque e respeito, de certa forma, considerando-se sua engenhosidade e estrutura. 


Talvez, apesar dos meus protestos, seja somente o mundo queimando, Raio de Sol. S. é uma irrealidade brutal misturada a aspectos historicamente contextualizados que em alguns momentos suscita dúvidas sobre sua real existência. E eu nem preciso dizer que recomendo o livro e vou preservar meu exemplar entre minhas estantes, esperando talvez um interlocutor para diálogos em margens e notas de rodapés em um livro aleatório. 

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